O filme “Abaixo o Amor” (originalmente Down with Love), estrelado por Renée Zellweger e Ewan McGregor, é muito mais do que uma comédia romântica despretensiosa. Trata-se de uma vibrante e estilizada homenagem às comédias de costumes americanas da década de 1960, em especial aquelas estreladas pela icônica dupla Doris Day e Rock Hudson. Ao recriar a estética visual, o ritmo e o humor camp da época, o filme de Peyton Reed usa a sátira para abordar a complexa efervescência social, cultural e de gênero daquela era.
O Cenário dos Anos 60: Entre o Conservadorismo e a Libertação
Ambientado em uma Nova York ultrachique e colorida de 1962, o filme captura o período de transição nos Estados Unidos. O início dos anos 60 ainda carregava o verniz do conservadorismo da década anterior, mas as sementes da revolução cultural já estavam plantadas, principalmente no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade.
O Despertar Feminino e a Independência:
O cerne da trama reside no livro de Barbara Novak (Renée Zellweger), “Abaixo o Amor”, que se torna um best-seller e um manifesto para as mulheres. O livro prega que as mulheres devem abandonar a busca pelo casamento e pelo amor romântico como propósito único, buscando, em vez disso, a independência financeira e, de forma revolucionária para a época, a satisfação sexual casual e sem compromisso, tradicionalmente um privilégio masculino.
Sociedade e Costumes: O livro de Barbara choca a sociedade ao desafiar o ideal de feminilidade da época, onde o destino “natural” de uma mulher era ser esposa e mãe. A ideia de uma mulher priorizar a carreira e a própria felicidade em detrimento de um relacionamento fixo era subversiva. O filme espelha o início do Feminismo de Segunda Onda e os debates sobre a pílula anticoncepcional (embora não a mencione diretamente), que deu às mulheres um controle inédito sobre seus corpos e vidas.
A Batalha dos Sexos no Mercado de Trabalho:
A ascensão de Barbara Novak como colunista e autora de sucesso coloca em evidência a disparidade de poder no ambiente de trabalho. Ela é vista como uma ameaça por Catcher Block (Ewan McGregor), um jornalista mulherengo, chauvinista e aclamado como o “homem das mulheres”.
Cultura Corporativa: Catcher representa o poder masculino estabelecido, que se sente incomodado pela nova voz e influência feminina. A disputa entre eles reflete a tensão real da época, onde as mulheres começavam a ocupar espaços antes dominados por homens, enfrentando resistência e o medo masculino de perder o domínio. A crítica, muitas vezes sutil, está no excesso de poder que os homens detinham até então.
A Estética e o Kitsch dos Anos 60:
A visão da época é magistralmente transmitida pela estética kitsch do filme. “Abaixo o Amor” é um deslumbre visual que capta o design vibrante e otimista do início dos anos 60:
Design e Moda: Cenários ultra-coloridos, decoração futurista de meados do século (Mid-Century Modern), roupas impecáveis com cortes mod e a profusão de cores primárias são referências diretas ao estilo visual da época.
A Trilha Sonora e o Ritmo: A trilha sonora e a coreografia dos diálogos remetem ao estilo ágil e espirituoso das comédias de Doris Day e Rock Hudson, com a adição de números quase musicais, reforçando o caráter de homenagem e paródia.
Em suma, “Abaixo o Amor” não apenas diverte com sua comédia romântica estilizada e plot twist inesperado, mas também funciona como um espelho caricatural da sociedade que tentava equilibrar o conservadorismo moribundo com o ímpeto de mudança. O filme celebra, com elegância e sarcasmo, as mulheres que ousaram desafiar o status quo e exigiram seu lugar no mundo, não apenas como amantes ou esposas, mas como indivíduos plenos, financeiramente independentes e sexualmente livres. Ao fazer isso, “Abaixo o Amor” mostra que a “batalha dos sexos” nos anos 60 era uma questão de costumes, poder e, acima de tudo, liberdade.